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Neurociência, Neurodireito e Seguridade Social no Brasil

  • Foto do escritor: Silvâni Silva
    Silvâni Silva
  • 6 de jul.
  • 19 min de leitura

Atualizado: 9 de set.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 194, insere capítulo dedicado à Seguridade Social, assegurando os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. No entanto, alcançar esses direitos pode ser doloroso para muitos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para pessoas em situação de vulnerabilidade que necessitam da assistência social. Essa situação se deve ao fato de que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal responsável pelo reconhecimento do direito, pela manutenção e pelo pagamento de benefícios, comete erros sucessivos ao avaliar requerimentos de benefícios, transportando o processo administrativo para o judicial. Diante dessa situação, propõe-se uma conexão entre Neurociência, Neurodireito e Seguridade Social com o intuito de incorporar conhecimentos e métodos neurocientíficos capazes de proporcionar aos profissionais da saúde e julgadores novas possibilidades de compreensão e enfrentamento dos desafios.


Ilustração representando o Neurodireito: cérebro conectado à balança da justiça, livro aberto e mão estendida, simbolizando a integração entre direito, neurociência e ética.


1. Neurociência e sua Relação com o Direito


Com base nos ensinamentos de António Damásio, que sempre buscou compreender os mecanismos por trás do cérebro, da mente e do comportamento; nas complexidades do cérebro transmitidas pelo neurologista V. S. Ramachandran em O que o cérebro tem para contar (2014), obra em que ele explora os membros fantasmas, cérebros plásticos e as lesões cerebrais, pode-se concluir que a Neurociência é uma disciplina científica multidisciplinar que investiga o funcionamento do sistema nervoso, com foco no cérebro, especialmente no modo como influenciam nossas emoções, decisões e comportamentos. De acordo com Roberto Lent (2010, p. 6), “o mais correto seria referir-se a Neurociências, no plural”, considerando que esse campo compreende diversas matérias, como a neurociência celular, molecular, comportamental, entre outras, vejamos:


A Neurociência comportamental dedica-se a estudar as estruturas neurais que produzem comportamentos e outros fenômenos psicológicos como o sono, os comportamentos sexuais, emocionais, e muitos outros. [...] A Neurociência cognitiva trata das capacidades mentais mais complexas, geralmente típicas do homem, como a linguagem, a autoconsciência, e a Memória etc. (LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociência. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2010. p. 6).

No que diz respeito ao campo jurídico, a história está repleta de conceitos sobre o Direito como conjunto de normas e como regulação das condutas humanas, mas optou-se por citar o pensador LYRA FILHO, 2010, pela simplicidade e fuga dos conceitos arraigados: “Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões”.


Por consistir nas relações humanas, a evolução jurídica acontece em seu núcleo, refletindo a complexidade e diversidade neurobiológica das pessoas que integram as sociedades. Foi a partir das obras de Thomas Hobbes, O Leviatã (1651), e John Locke, Ensaio sobre o governo civil (1690), que surgiram as primeiras ideias representando uma mudança do pensamento social e jurídico, as quais resultaram na Revolução Francesa de 1789, fundamentada em princípios incontestáveis da igualdade de todos perante a lei.



1.1. Subdisciplinas da Neurociência e suas Contribuições para o Entendimento do Comportamento Humano


Como compreendido anteriormente, a Neurociência é um campo interdisciplinar que investiga o sistema nervoso, combinando conhecimentos de diversas outras áreas do conhecimento humano, sendo que cada uma investiga dimensões específicas do sistema nervoso com o intuito de entender a conduta humana, como: 


a) Neurociência Molecular e Celular: investiga os processos bioquímicos e moleculares que ocorrem nos neurônios e suas ligações sinápticas, oferecendo fundamentos para entender como essas alterações podem influenciar o comportamento, o que é relevante para o mundo jurídico; 


b) Neurociência Sistêmica: examina as redes neurais e como diferentes regiões cerebrais dialogam para gerar funções complexas, como a percepção e o controle motor; 


c) Neurociência Cognitiva: estuda os processos mentais superiores, como atenção, memória e tomada de decisão, colaborando para a compreensão de como essas funções são representadas e processadas no cérebro;


d) Neurociência Comportamental: responsável pela análise das relações entre o sistema nervoso e o comportamento observável, ou seja, como os fatores neurológicos influenciam ações e reações em diferentes situações.

 

A síntese acima se baseia em diversos conceitos de Neurociência, dos quais merecem destaque,  in verbis:


Em sua forma mais básica, a neurociência é o estudo do sistema nervoso - da estrutura à função, do desenvolvimento à degeneração, na saúde e na doença. Abrange todo o sistema nervoso, com foco principal no cérebro. Incrivelmente complexo, nossos cérebros definem quem somos e o que fazemos. Eles armazenam nossas memórias e nos permitem aprender com eles. Nossas células cerebrais e seus circuitos criam novos pensamentos, ideias e movimentos e reforçam os antigos. Suas conexões individuais (sinapses) são responsáveis pelos primeiros passos de um bebê e por cada desempenho atlético recorde, com cada pensamento e movimento exigindo tempo e conexões primorosamente precisos. (Tradução nossa, KING'S COLLEGE LONDON, s.d.)

Os neurocientistas se concentram no cérebro e seu impacto no comportamento e nas funções cognitivas. A neurociência não se preocupa apenas com o funcionamento normal do sistema nervoso, mas também com o que acontece com o sistema nervoso quando as pessoas têm distúrbios neurológicos, psiquiátricos e do neurodesenvolvimento.(Tradução nossa, GEORGETOWN UNIVERSITY, s.d.).

A Neurociência abrange diversas subdisciplinas que investigam o sistema nervoso em diferentes níveis, desde o molecular e celular até o cognitivo e comportamental. Essa amplitude de estudo permite uma compreensão aprofundada da conduta humana, o que se mostra de grande relevância para o campo jurídico.

A Sociedade de Neurociência (SfN), uma das maiores organizações dedicadas à pesquisa do cérebro, destaca a crescente interseção entre neurociência e Direito. Questões como responsabilidade, estado mental, capacidade de controle do comportamento, impacto do vício ou da idade na tomada de decisões, e a precisão da memória são exemplos de pontos em que os insights neurocientíficos podem auxiliar o sistema jurídico. Embora a aplicação da neurociência nos tribunais brasileiros ainda seja limitada em comparação com outros países, há um avanço notável, especialmente nas áreas do Direito Penal e Civil, que buscam compreender a vontade por trás de atos criminosos, a tomada de decisão, a culpabilidade e a reabilitação.


Assim, ao aprofundar a compreensão dos mecanismos neurais e a conexão entre o cérebro e as manifestações da mente humana, as neurociências contribuem para o aprimoramento da prestação jurisdicional, consolidando o Neurodireito e sua capacidade de analisar os fatores inconscientes e emocionais nas decisões e conflitos.



1.2 A Neurociência e a Tomada de Decisão Jurídica 


A aproximação entre a Neurociência e o Direito tem sido cada vez maior. Diversas parcerias são formadas para capacitar juízes na tomada de decisões. Como exemplos, podemos citar a Dana Foundation, que constituiu uma parceria com a American Association for the Advancement of Science (AAAS) para realizar seminários voltados para magistrados federais, estaduais e tribais. O objetivo é familiarizar os juízes com os avanços da neurociência e da psicologia cognitiva. Muitos tópicos já foram levantados, incluindo neuroanatomia, métodos e tecnologia  da neurociência; a neurociência da violência; a neurociência da memória; o cérebro adolescente; distúrbios da consciência, com debates sobre coma e estados minimamente conscientes; o cérebro envelhecido e a demência; a neurociência do vício; a neurociência do engano; e outros. Vários juízes participantes declararam a importância do conhecimento adquirido, e um deles escreveu: 


Em uma decisão importante sobre uma audiência de prisão preventiva de um jovem de 15 anos acusado de assassinato, o desenvolvimento do cérebro juvenil foi uma questão-chave para a prisão preventiva do jovem no tribunal de adultos. (Eu não fiz). (Tradução nossa, Dana Foudantion. 2025).

No mesmo sentido, a Royal Society, no Reino Unido, promove programas que reúnem cientistas e membros do judiciário para discutirem áreas de interesse comum e garantir que a melhor orientação científica esteja disponível aos tribunais.


 No Brasil, já foram promovidos vários cursos com o tema "Neurociências e Tomada de Decisão Judicial", como os da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Todos os cursos objetivam capacitar magistrados na compreensão do funcionamento do cérebro na tomada de decisão e dos mecanismos por trás das emoções e comportamentos humanos, assegurando que a ciência contemporânea seja corretamente compreendida e aplicada em decisões judiciais.



2. Neurociência e sua Relação com o Direito


  As neurociências ganharam o centro das atenções na década de 1990, quando foi consagrada pelo governo americano, o então Presidente George H. W. Bush, como a “Década do Cérebro”. Esse período foi marcado por um extraordinário aumento na visibilidade da neurociência e por um grande interesse no estudo do sistema nervoso com o surgimento da técnica fMRI (ressonância magnética funcional), utilizada no mapeamento de funções cerebrais, transformando o entendimento sobre as bases neurais da cognição e do comportamento. Nos anos seguintes, houve uma expansão de pesquisas neurocientíficas, divulgação de artigos, publicação de obras e conferências internacionais, conectando estudiosos de diversas áreas, como juristas, psicólogos e neurocientistas.


Do outro lado, nascia a história entre o Direito e a Neurociência. Embora a questão sobre anomalia mental e responsabilidade criminal já fosse antiga, as possibilidades de utilização dos novos conhecimentos sobre os fenômenos da mente poderiam colaborar com o sistema jurídico; fato que resultou numa nova área denominada neurodireito, em inglês: neurolaw. Esse termo apareceu pela primeira vez no artigo do neurocientista americano J. Sherrod Taylor, em 1991, publicado na revista Neuropsychology.

 

O termo Neurodireito propagou-se como novo campo de estudo. O sítio da MacArthur Foundation Research Network on Law and Neuroscience (Universidade Vanderbilt) publicou informações sobre a doação inicial de US$ 10 milhões para financiar o primeiro esforço sistemático de integração do Direito e da Neurociência.


Influenciados pelos EUA, nos últimos anos, o Neurodireito tem se firmado como um campo de estudo em diversos países. Acompanhar os avanços da Neurociência e os mecanismos que influenciam o comportamento humano, incorporando esses conhecimentos na interpretação e aplicação das normas, tem sido desafiador para diferentes sistemas jurídicos, sendo incluído no âmbito de estudos do Direito Internacional. 


Um objetivo central do Neurodireito é fornecer uma base científica para a compreensão do comportamento humano, levando a práticas e políticas jurídicas mais informadas e justas. (CARUSO, 2024, p. 1). Assim, pode-se afirmar que o Neurodireito é uma área de pesquisa interdisciplinar sobre o significado e as implicações da Neurociência para o Direito e para as práticas jurídicas. Ele engloba: o estudo do funcionamento neural do cérebro humano no que se refere às questões de crime, culpa e punição; as aplicações emergentes das tecnologias de imagem dentro dos processos judiciais; o desenvolvimento de métodos mais precisos de detecção de mentiras e de previsão de comportamento criminoso; aprimoramento de meios mais eficazes de reabilitação criminal e a melhoria dos procedimentos de sentença.


 Novos tempos exigem nova concepção jusfilosófica  sobre o Direito. Como ciência, o Direito deve ser  sensível aos avanços que a tecnologia e a capacidade cognitiva do homem possam impor para a superação dos novos desafios que se descortinam.(Lima, 2019, p. 42). Em resumo, o Neurodireito, consagrou-se como uma área interdisciplinar que conecta o cérebro ao mundo jurídico, propondo uma percepção mais justa sobre determinados comportamentos humanos.



3. Neurociência e sua Relação com a Seguridade Social no Brasil


A Seguridade Social, conforme definida pela Constituição Federal de 1988, artigo 194, constitui um sistema integrado de ações voltadas à saúde, à previdência e à assistência social, visando garantir os direitos sociais e promover o bem-estar da população. Trata-se de um dos pilares do Estado Democrático de Direito estabelecido logo após a ditadura, visando proteger os indivíduos em situações de vulnerabilidade decorrentes da idade, da doença, da incapacidade ou da insuficiência de renda. No Brasil, especificamente, o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), é administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal com competência para conceder e manter os benefícios e serviços previdenciários.


O INSS, antes denominado Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), foi criado pelo Decreto-Lei n.º 72/1966, com o objetivo de unificar os diversos Institutos de Aposentadorias e Pensões existentes, buscando maior eficácia operacional dos benefícios previdenciários. Atualmente, a Previdência Social é regida por diversas legislações, sendo a Lei 8.213/91, a que define a finalidade e os princípios básicos da Previdência Social. Paralelamente, consta a lei 8.212/1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, destinada a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social.


No entanto, o Estado brasileiro distanciou-se dos princípios constitucionais e princípios dispostos em leis específicas, pois, na prática há diversos problemas de ordem política, administrativa e estrutural que geram graves violações aos direitos dos segurados e das pessoas em estado de vulnerabilidade que necessitam da assistência social.


Lamentavelmente, os problemas da Previdência Social no Brasil são históricos, constantemente reformas previdenciárias são introduzidas com várias modificações, sempre com o mesmo argumento de déficit na conta da Previdência Social, responsabilizando os segurados que contribuíram por anos, na expectativa de uma aposentadoria digna. Ocorre que os valores das contribuições sociais e outras receitas arrecadadas pelo Estado, que por lei deveriam ser direcionados para a seguridade social, ao longo dos últimos anos, como é notório, são destinados para finalidades diversas, muitas vezes sem retorno social. Isso contraria o propósito inicial de sustentabilidade da previdência social, afetando a garantia de proteção social e dignidade aos cidadãos beneficiários.



3.1.  Princípio da Negação. A Cultura do Indeferimento do Sistema  Previdenciário


Os princípios norteadores da Previdência Social instituídos com o fim de assegurar aos beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente (artigo 1º da Lei 8.213/1991), são frequentemente esquecidos, dando abertura ao que se pode chamar de “princípio da negação”. Esse princípio não está disposto na legislação, mas ele é sentido pela maioria dos beneficiários.

Homem idoso de muletas recebe indeferimento de benefício por médico perito impassível, simbolizando a negação do direito previdenciário no Brasil

É complexo compreender a falha do Estado em cumprir seus próprios princípios, democraticamente constituídos, ao agravar a desigualdade social, ferir a dignidade humana e obrigar seus cidadãos à judicialização para obtenção de direitos sociais básicos. Essa realidade se revela quando um pedido administrativo de concessão de benefício previdenciário ou assistencial, com todos os requisitos legais preenchidos, é indeferido. Nesse momento, o cérebro ativa seus sistemas de alarme de resposta ao estresse. Há uma total desregulação emocional e a esperança é perdida, vez que o beneficiário tem conhecimento de que um processo judicial no Brasil pode se arrastar por anos; muitos morrem ou têm a doença agravada sem que haja finalização processual. Essa situação é devastadora para a saúde física e mental, pois o cérebro entende que a situação não será resolvida por anos, dando espaço à ansiedade e à profunda angústia.


A esperança é consumida pelo tempo, e a incerteza de uma sentença favorável ativa circuitos cerebrais associados ao medo e à antecipação de perdas, aumentando cada vez mais a angústia de não saber se haverá, no amanhã, como prover seu próprio sustento. Em determinadas regiões, especialmente nas abrangidas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), os processos previdenciários podem levar mais de uma década para serem julgados, ou seja, décadas de insegurança e sofrimento.


Além disso, o sistema previdenciário brasileiro vive sob constante instabilidade normativa, com alterações legislativas recorrentes que afetam diretamente a previsibilidade dos direitos. Esse ambiente de incerteza jurídica atinge não somente os segurados, mas também os profissionais da área, comprometendo a previsibilidade do direito e a uniformidade das decisões judiciais. Portanto, cada negação indevida de direitos por parte do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), na maioria das vezes, significa o agravamento da vulnerabilidade de um beneficiário. O Estado, que deveria proteger, torna-se autor de mecanismo que opera de uma maneira "neurodesumana”.


No decorrer desses processos administrativo e judicial, aqueles que precisam solicitar Auxílio por Incapacidade Temporária (Auxílio-doença) ou Aposentadoria por Incapacidade Permanente (Aposentadoria por Invalidez), precisam enfrentar outra barreira, por vezes extremamente humilhante: as perícias médicas.


A perícia médica previdenciária, tanto a administrativa quanto a judicial, que deveria ser instrumento técnico de proteção com uma profunda avaliação feita por uma equipe médica multidisciplinar, especialistas nas áreas a serem avaliadas, muitas vezes se mostra frágil, marcada por uma breve avaliação, desrespeitosa e com ausência de fundamentos baseados em evidências científicas. Em muitos casos, mesmo quando o segurado possui uma incapacidade permanente para o exercício de qualquer trabalho, essa incapacidade não é reconhecida em desrespeito à Lei 8.213/1991, que determina no seu art. 43, a conversão do auxílio por incapacidade temporária para aposentadoria por incapacidade permanente, a partir do dia imediato ao da cessação do auxílio-doença. A falta de observação desse dispositivo cria uma repetição de agendamentos e perícias médicas, fato responsável pelo maior número de ajuizamentos de processos previdenciários.


 

3.2.  A Violência nas Perícias Médicas Previdenciárias e os Impactos Neuropsicológicos 


As perícias médicas são necessárias para avaliar o grau de incapacidade ou grau de deficiência dos beneficiários. A realização da perícia deveria ser um momento de acolhimento do periciado, com atendimento humanizado e análise detalhada dos documentos e exames apresentados pelo examinado. No entanto, frequentemente o que prevalece é a arrogância e a desconfiança do profissional da área da saúde, fazendo com que o periciando se sinta agredido, intimidado, humilhado e obrigado a fazer movimentos que lhe causam dor.

A situação é tão grave que foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), em 29 de abril de 2025, a Lei n.º 15.126, que insere a “atenção humanizada” como mais um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), alterando a Lei n.º 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde). Segundo notícia publicada no site oficial do Governo Federal em 29 de abril de 2025, intitulada “Lula sanciona lei que incorpora atenção humanizada ao SUS”:

Com a atenção humanizada amplia-se a relação entre o profissional de saúde e o paciente, de modo a proporcionar um atendimento mais acolhedor, com mais empatia e respeito, para tornar a experiência do paciente mais confortável, aumentando a qualidade do cuidado e, com isso, as chances de cura.

Diante disso, a inclusão explícita da “atenção humanizada” representa, na prática, uma declaração de que os princípios legalmente consagrados não foram suficientes para assegurar um atendimento respeitoso. E é inegável que a simples inserção de mais um termo na legislação dificilmente será capaz, por si só, de reverter o histórico descaso no tratamento dado às pessoas, por parte das instituições públicas. 


Essa violência pericial resulta em respostas neurobiológicas, agravando a saúde de quem já se encontra fragilizado. Assim, a ligação entre Neurociência e Seguridade Social no Brasil deve evoluir de modo a proporcionar a inclusão do conhecimento interdisciplinar, guiado pela ciência, pela ética e pelo respeito incondicional à dignidade da pessoa humana. Incorporar critérios neurocientíficos nas perícias médicas que avaliam questões por incapacidade temporária ou permanente de beneficiários e nas avaliações que determinam o grau de deficiência das pessoas com deficiência; capacitar peritos e julgadores para compreender os aspectos técnicos e éticos envolvidos e adotar políticas públicas de acolhimento e celeridade processual. Faz-se necessário para que, verdadeiramente, sejam cumpridos os princípios constitucionais e infraconstitucionais garantidores da dignidade da pessoa humana.


A perícia médica deve atentar para as orientações da Organização Mundial de Saúde, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho da Justiça Federal, todos no sentido de que a perícia médica deve ir além da avaliação das funcionalidades laborais, verificando também as condições pessoais e sociais a fim de constatar se o beneficiário tem efetivas condições de reingresso no mercado de trabalho. Essas observações poderiam reduzir o sofrimento físico e mental daqueles que se encontram em momento de incapacidade laboral.


A Neurociência oferece um conjunto de estudos comprovando como a violência disfarçada pode originar o estresse que leva à liberação do hormônio esteroide cortisol do córtex adrenal. Por sua vez, o efeito direto do cortisol danifica o hipocampo, que faz parte do sistema límbico e desempenha um papel importante na memória e no aprendizado, ou seja, esses efeitos do estresse e cortisol causam envelhecimento prematuro do cérebro.


É preciso reconhecer que o tema é de suma importância. O sistema político deve assumir responsabilidades que protejam aqueles que buscam pelos seus direitos perante a Seguridade Social, combatendo as agressões de maus-tratos, humilhação, desconfiança e negação infundada. Essas discriminações, mormente com os mais vulneráveis, causam uma série de consequências incompatíveis com a moralidade pública e com a ciência médica em um Estado democrático.



4. Consequências Neurobiológicas da Espera por Decisões Judiciais


Para o enfrentamento da questão, o sistema da Seguridade Social e o Poder Judiciário devem observar as pesquisas neurocientíficas, assim o número de beneficiários que, injustamente, são condenados ao adoecimento devido às falhas de agentes públicos, somadas à morosidade processual, seriam reduzidos. Nos tribunais regionais federais do Brasil, frequentemente, há desconfiança  quando a doença ou lesão não podem ser percebidas a olho nu. É comum sentenças serem proferidas indeferindo o requerimento do beneficiário com fundamento exclusivo no laudo médico judicial, cuja avaliação foi realizada em poucos minutos, ignorando ou avaliando superficialmente os laudos médicos emitidos por especialistas que acompanharam a progressão patológica ao longo dos anos. Às vezes, as queixas do periciado são diversas, exigindo mais de um especialista, mas isso não importa para o sistema, consequentemente, é gerado um sofrimento emocional grave que pode afetar a estrutura cerebral.


Infográfico sobre os efeitos do estresse crônico no cérebro e no corpo: déficit de memória e atenção, aumento da pressão arterial, diminuição da serotonina, maior sensibilidade à dor e supressão do sistema imunológico.

Ainda que as neurociências, as tecnologias diagnósticas e perícias médicas envolvendo questões do Direito Penal, capazes de identificar dores, lesões e emoções no cérebro também estejam disponíveis para a área do Direito da Seguridade Social, na prática, o acesso a esses recursos é quase impossível para a maioria dos beneficiários em situação de vulnerabilidade social, considerando a omissão do Poder Público e as poucas publicações enfrentando as injustiças cometidas. Cabe destacar as tecnologias neurocientíficas bastantes usadas para nortear as decisões nos tribunais brasileiros, como: a ressonância magnética funcional, a tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT), a tomografia por emissão de pósitrons (PET), entre outras.


A ineficiência da Administração Pública em garantir meios de sobrevivência com o mínimo de dignidade para aqueles que dependem do Estado, afronta o  princípio constitucional da eficiência da Administração Pública, segundo o art. 37, caput da Constituição Federal. Os procedimentos necessários para nortear decisões judiciais mais justas deveriam ser realizados com a disponibilização das técnicas neurocientíficas, mormente em relação ao sistema cerebral, dentro de um prazo justo, evitando assim o sofrimento emocional.

Segundo António Damásio, o cérebro e o corpo encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquímicos e neurais recíprocos dirigidos um para o outro. Assim, é indubitável que uma longa batalha judicial por quem espera um benefício previdenciário ou um auxílio assistencial para prover despesas básicas do seu próprio sustento, provoca um desequilíbrio emocional tão profundo que, inevitavelmente, desencadeia o surgimento ou agravamento de patologias.


Nessa situação, um dos primeiros sintomas neurobiológicos é a insônia, frequentemente minimizada em sua gravidade, pois não se trata simplesmente de noites mal dormidas, quando o descanso se torna biologicamente interrompido. A insônia é uma perturbação do sono amplamente reconhecida como fator desencadeante de diversos problemas físicos e psicológicos. Contudo, quando provocada por circunstâncias específicas, como a espera prolongada por decisões judiciais, seus efeitos tornam-se ainda mais preocupantes.


Estudos recentes, como os apresentados pela American Heart Association, indicam que a privação crônica do sono pode desencadear sérias complicações cardíacas, incluindo hipertensão arterial, arritmias e um risco elevado de doenças cardiovasculares. Psicologicamente, a insônia prolongada promove um aumento significativo do estresse, ansiedade e depressão, afetando profundamente a qualidade de vida e a capacidade funcional.


Conforme anunciado pelo National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS), a Neurociência explica que o sono é um processo complexo e dinâmico que afeta a forma como você funciona, que o sono insuficiente compromete funções cerebrais fundamentais como a atenção, memória e capacidade decisória, levando à redução da eficácia cotidiana e ao isolamento social. Além disso, os prejuízos à saúde mental e física formam um círculo vicioso: quanto mais tempo dura a espera, maior a ansiedade e menor a qualidade do sono. (National Institute of Neurological Disorders and Stroke, 2025).


O estresse crônico, segundo Robert M.  Sapolsky, uma das referências mais respeitadas sobre esse tema, é outro fator que se desenvolve, ampliado pela sensação de desamparo, insegurança financeira e preocupação constante com o futuro. Tais sentimentos negativos ativam respostas fisiológicas relacionadas ao estresse crônico, elevando os níveis de cortisol e adrenalina no organismo, comprometendo ainda mais o descanso noturno. Na sua obra ¿Por qué las cebras no tienen úlcera?, Sapolsky apresenta como os seres humanos ativam o estresse crônico em situações de riscos, vejamos:

  

"El modo de concebir las enfermedades que nos afligen ha sufrido una revolución, que consiste en reconocer la interacción entre el cuerpo y la mente, en admitir que las emociones y la personalidad causan un tremendo impacto en el funcionamiento y la salud de la práctica totalidad de las células del cuerpo. Es una revolución que tiene en cuenta el papel del estrés en el grado de vulnerabilidad a la enfermedad, el modo de enfrentarse a los agentes estresantes y el concepto decisivo de que no se puede entender de verdad una enfermedad in vacuo, sino en el contexto de la persona que la padece." (Sapolsky, 2008, p. 16). 
"Las enfermedades que actualmente nos acosan provocan un daño lento y acumulativo: enfermedades del corazón, cáncer, trastornos cerebrovasculares... Al mismo tiempo que este cambio relativamente reciente en los patrones de enfermedad, se han producido cambios en el modo de percibir el proceso de la enfermedad en sí. Hemos llegado a reconocer el complejísimo entrelazamiento entre la biología y las emociones, las infinitas formas en que la personalidad, los sentimientos y el pensamiento se reflejan e influyen en los hechos del cuerpo. Una de las manifestaciones más interesantes de este reconocimiento es la comprensión de que los trastornos emocionales extremos nos afectan negativamente. En el habla corriente hay una expresión que nos resulta familiar: el estrés causa enfermedades." (Sapolsky,2008, p. 23). 
"Como resultado, hoy disponemos de una extraordinaria cantidad de información fisiológica, bioquímica y molecular sobre el modo en que todos los elementos intangibles de nuestras vidas —la agitación emocional, las características psicológicas, el tipo de sociedad en la que vivimos y nuestro puesto en ella— influyen en hechos corporales reales, como que el colesterol obstruya los vasos sanguíneos o que no entorpezca la circulación, que nuestras células adiposas dejen de prestar atención a la insulina y nos sumerjan en la diabetes, que las neuronas del cerebro sobrevivan cinco minutos sin oxígeno durante un paro cardíaco." (Sapolsky,2008, p. 24).

Conforme acima coletado, é imperativo que o Estado reconheça não apenas os aspectos econômicos, mas também os impactos psicossociais e neurobiológicos que são provocados pela morosidade e insegurança jurídica, face a judicialização de processos previdenciários. Implementar políticas eficazes de comunicação, transparência e agilidade administrativa pode não somente diminuir os efeitos nocivos induzidos, mas sobretudo promover uma significativa melhora na qualidade de vida dos beneficiários.



5. Considerações Finais


O principal objetivo foi chamar a atenção do Neurodireito para o campo da Seguridade Social no Brasil. Do mesmo modo que a Neurociência é aplicada no âmbito do Direito Penal e Civil como instrumento para uma sentença ser proferida de forma mais equilibrada, também pode constituir uma nova estrutura para o Direito da Seguridade Social, mormente por essa área envolver questões de direitos humanos universais.


A metodologia empregada inclui pesquisas em conteúdos literários e legislações aplicáveis, objetivando estabelecer uma conexão entre o estresse e a longa espera por um processo judicial, quando a demanda envolve questões básicas de sobrevivência com o mínimo de dignidade, ou seja, demandas de natureza alimentar.


As emoções negativas causadas por indeferimentos administrativos, sem razão plausível, forçando uma judicialização e imensa insegurança jurídica, foram o principal fator destacado, vez que produzem impactos significativos na saúde mental dos beneficiários. Esses efeitos não são meramente abstratos: manifestam-se no corpo e no psiquismo, com implicações profundas para o bem-estar individual e coletivo. A análise revela o quanto as perícias médicas, muitas vezes superficiais, agravam ainda mais o sofrimento dos cidadãos por meio de práticas desumanizadas, preconceituosas e mecanizadas, em total dissonância com o princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda, considera-se a possibilidade de o Estado oferecer formação técnica e ética em neurociência do comportamento para os profissionais da área da saúde.


Em suma, esse artigo buscou ressaltar a importância da conexão entre a Neurociência, o Neurodireito, e a Seguridade Social, demonstrando como as emoções mal processadas e prolongadas, despertam gatilhos para o desenvolvimento ou agravamento de patologias, exemplificando a insônia e o estresse.



6. Referências


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