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Sequestro Internacional de Crianças e os Desafios na Aplicação da Convenção de Haia

  • Silvâni Silva
  • 14 de jul.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 9 de set.

A remoção ou retenção de um menor de 16 anos por um de seus genitores, no âmbito internacional, configura sequestro internacional fundamentado na Convenção de Haia de 1980.

O sequestro da criança por um dos genitores pode ocasionar cicatrizes biológicas e sociais que podem durar por vários anos.
O sequestro da criança por um dos genitores pode ocasionar cicatrizes biológicas e sociais que podem durar por vários anos.

  1. A Configuração Jurídica do Sequestro Internacional de Crianças


Como resposta a uma das situações mais complexas no âmbito do direito de família, foi criada a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças em 1980, e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n.º 3.413/2000, desejando proteger a criança no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenções ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita.


De acordo com os termos da Convenção de Haia, a conduta praticada por um dos pais se caracteriza de duas formas:


a) Retenção ilícita - ocorre quando uma viagem internacional com o menor é autorizada por um determinado período, no entanto, vencido o prazo, o genitor que viajou com o menor não retorna para o país de origem. Exemplo: uma mãe viaja com o seu filho para passar as férias na Itália com a devida autorização do pai, mas ao final no período, se recusa a trazê-lo de volta ao Brasil, onde o filho tem residência habitual com o pai.


b) Transferência ilícita - ocorre quando a criança é retirada de seu país de residência habitual e levada para o exterior, em violação a um direito de guarda exercido legalmente por outra pessoa ou instituição. Exemplo: um dos genitores leva o menor para fora do país sem autorização de quem detém a guarda legal.


A transferência ilícita pode ser de difícil compreensão para quem vive em países com controle rigoroso de fronteiras, no entanto, não é raro de acontecer.



  1. Situação de Transferência Ilícita 


No Brasil, a legislação é bastante severa quando se trata de uma criança ou adolescente menor de 16 (dezesseis) anos deixar o país. A matéria é tratada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos artigos 83 e seguintes, que exige expressa autorização. A exceção ocorre em duas situações: primeiro, se estiver acompanhado de ambos os pais ou responsável; segundo, se estiver na companhia de um dos pais, autorizado expressamente pelo outro através de documento com firma reconhecida.


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também trata da matéria, Resolução nº. 131, de 26/05/2011, incluindo em seu site uma cartilha orientadora para embarque de menores em voos para o exterior e formulário padrão de autorização de viagem internacional.


Ocorre que muitos países não possuem uma lei formal de autorização de saída para menores viajando com um dos pais, limitam-se apenas a “recomendações” para que o genitor que viaja com o menor tenha uma carta de consentimento do outro. 


Países que possuem legislações com fundamento em preceitos religiosos, mesmo que signatários da Convenção de Haia, tendem a conceder ao pai autoridade total sobre os filhos. Como exemplo de subtração de menor levado para país que dificulta o cumprimento judicial,  é o caso de Alba Rodríguez, uma mãe espanhola, que teve a sua filha levada pelo pai para o Egito, com promessa de viagem temporária para visitar a família paterna, conforme La Gaceta (2025):

La situación ha escalado hasta el horror: Alba ha sido informada por un familiar disidente del entorno paterno de que su hija ha sido prometida en matrimonio a un niño egipcio de 10 años, y que la unión se formalizará cuando ella cumpla nueve años. La pequeña, por ahora, está a punto de cumplir cinco.
A pesar de haber denunciado ante todas las instancias posibles —Ministerio de Exteriores, Fiscalía de Menores, embajadas, consulados, ONG—, la madre no ha recibido ninguna ayuda efectiva. Egipto no forma parte del Convenio de La Haya sobre sustracción internacional de menores, lo que complica la vía judicial. «Una jueza me dijo que lo mejor era que fuera yo misma a buscarla, por mi cuenta y riesgo», relata Alba con desesperación.

Casos como o enfrentado pela Alba, cidadã espanhola, em que o Direito Internacional não é respeitado por um dos Estados, restam apenas recursos diplomáticos, geralmente lentos e de baixa efetividade, para solicitar o retorno da criança.



  1. Convenção de Haia e as Exceções para o Retorno Imediato do Menor


O sequestro internacional de crianças, nos termos da Convenção de Haia, é um drama que reúne esforços por parte da comunidade internacional, visando a proteção dos menores, garantindo o retorno ao país de sua residência habitual. Todavia, a Convenção estabelece exceções, como prevê o artigo 13: 


Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa também poderá não aceitar o retorno da criança quando decorrido mais de um ano entre a data da transferência ou da retenção ilícita e a data do início do processo, ainda, se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio (artigo 12). No mesmo sentido de recusa, “o retorno da criança poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (artigo 20).

As exceções são cuidadosamente verificadas pelos tribunais para não haver uma banalização do propósito principal da Convenção de Haia.



  1. Sequestro Internacional e Violência Doméstica


A violência doméstica é considerada exceção que se enquadra no artigo 13, b, da Convenção de Haia, sendo entendida como:


a) risco direto à criança - quando a violência doméstica no país de origem era dirigida também à criança, nesse caso se argumenta que o retorno a exporia a um risco grave de perigo físico ou psíquico.


b) risco indireto - quando a violência era contra o genitor cuidador. Nesse caso, ainda que a criança não seja a vítima direta da violência, retornar a um ambiente onde seu genitor cuidador (geralmente a mãe) será vítima de violência, coloca a própria criança em uma situação intolerável, expondo-a em risco grave de perigo psíquico, pois testemunhar a violência contra um dos pais é hoje amplamente reconhecido como uma forma de trauma e abuso infantil.


As questões relativas à  subtração internacional de menores ganham destaque no Brasil com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da ADI 4245. O processo foi incluído no calendário de julgamento pelo Presidente da sessão, com data prevista para 13/08/2025. O tema questiona alguns pontos da Convenção de Haia, como determinar o retorno imediato da criança. A parte autora defende que essa regra não deve ser absoluta por contrariar o artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, que assegura o direito de acesso à Justiça, e o artigo 227, que assegura proteção prioritária aos direitos da criança e do adolescente. Portanto, esse tema abrange a violência doméstica. A intenção é priorizar as perícias psicológicas e sociais para aferir o melhor interesse da criança nos processos de busca e apreensão propostos pela União, através da Advocacia-Geral da União (AGU), com fundamento na Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.



  1. O impacto Neuropsicológico do Sequestro Internacional na Infância


O sequestro parental é uma forma de trauma complexo, pois o rompimento forçado da criança do convívio de um dos genitores, ainda que motivado por ambiente inseguro, pode provocar desequilíbrios significativos no desenvolvimento neurobiológico da criança. 


A criança que experiencia um sequestro internacional, mesmo quando a fuga é para protegê-la de um ambiente de violência doméstica, sofre grande consequências emocionais, pois ela sente medo de ter que retornar, há perda de confiança, dificuldades de apego e insegurança pela mudança cultural. Tudo isso pode causar alterações cerebrais associadas à dificuldade em formar novos vínculos e em lidar com desafios. Há um sentimento constante de tristeza e ansiedade, o que eleva os níveis de estresse.


Consequentemente, a exposição prolongada ao estresse ativa um sistema chamado eixo: hipotálamo–hipófise–adrenal (HPA), isso resulta em níveis elevados de cortisol, um hormônio que prejudica áreas importantes do cérebro, como o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal. Essas áreas são fundamentais para a memória, as emoções e o modo como é regulado o comportamento.


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Segundo Beelen (2016), “quanto mais jovem a criança, mais amplo e duradouro é o impacto [do trauma], […] e a Experiência Traumática Pervasiva (ETP) afeta o funcionamento geral da criança em praticamente todas as tarefas do desenvolvimento” (pág. 7). Esse estudo é relevante ao se considerar as consequências do rompimento de laços pessoais devido à diferença cultural e a ambivalência emocional que caracteriza a maioria dos casos de sequestro internacional.


Assim, percebe-se que a subtração internacional de crianças apresenta uma complexidade neuropsicológica que transcende a análise jurídica tradicional, exigindo uma compreensão profunda dos diferentes contextos que envolvem a retirada da criança de um ambiente familiar seguro. Por outro lado, quando a subtração ocorre como medida de proteção contra violência física ou psicológica exercida por um dos genitores, a criança já se encontra em estado de estresse tóxico crônico, com seu sistema neurológico previamente comprometido pela exposição contínua ao ambiente de insegurança e agressão. Portanto, cada caso de subtração internacional demanda uma análise individualizada que considere não apenas os aspectos legais, mas fundamentalmente o superior interesse da criança. 


 

6. Conclusão


O sequestro internacional de crianças representa um dos maiores desafios para os sistemas jurídicos contemporâneos. De um lado, temos a Convenção de Haia de 1980, o mais importante esforço da comunidade internacional para proteger os menores de deslocamentos ou retenções ilícitas, buscando assegurar o retorno imediato à sua residência habitual. Do outro lado, a complexa realidade de casos como o de Alba, que demonstram a impotência da norma, mormente quando um dos Estados envolvidos não é signatário da Convenção. Ainda, as exceções previstas na própria Convenção, como o grave risco à criança ou a sua adaptação ao novo meio, geram debates intensos e decisões judiciais divergentes, entre determinar o retorno imediato ao país de origem e a necessidade de analisar e priorizar o melhor interesse da criança.



7. Referências


BEELEN, B. M. J. The Psychological Impact of Child Abduction – Meaningful Participation of Children. Brno: Syntagma, 2016. Disponível em: 08._Beelen_-_The_psychological_Impact_of_Child_Abduction_and_the_Meaningful_Participation_of_Children.pdf  Acesso em: 14 jul. 2025.


BRASIL. Decreto nº 3.413, de 14 de abril de 2000. Promulga a Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças. Disponível em: planalto.gov.br.


BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Subtração Internacional de Crianças. Disponível em: gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/cooperacao-internacional/subtracao-internacional.


BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,. Disponível em: L8069  Acesso em: 13 jul. 2025.     

 

CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL (CJF). Subtração Internacional de Criança. Disponível em: cjf.jus.br.


CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Viagem ao exterior. Brasília, DF: CNJ, [20--]. Disponível em: Viagem ao Exterior - Portal CNJ Acesso em: 13 jul. 2025.  


GACETA. Um marroquino dá vários socos e envia ao hospital duas mulheres nas festas de Molvízar, Granada, por pedirem que ele descesse do palco. La Gaceta, 13 jul. 2025. Disponível em: https://gaceta.es/espana/una-madre-espanola-denuncia-que-su-hija-esta-secuestrada-en-egipto-y-que-va-a-ser-casada-pese-a-tener-tan-solo-cuatro-anos-20250708-1519/ Acesso em: 25 jun. 2025.


SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Sequestro internacional de crianças: uma preocupação mundial à luz da jurisprudência do STJ. Publicado em 4 de agosto de 2024. 




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